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VII. Quadro geral

Capítulo VI - Trocar; tópico VII. Quadro geral

Os quatro momentos que fixam as funções essenciais da linguagem (atribuição, articulação, designação e derivação) nos séculos XVII e XVIII
Os quatro momentos que fixam as funções essenciais da linguagem (atribuição, articulação, designação e derivação) no século XIX

A organização geral das ordens empíricas pode agora ser delineada em seu conjunto(80).

Constata-se, de início, que a análise das riquezas obedece à mesma configuração que a história natural e a gramática geral.

A teoria do valor permite, com efeito, explicar (seja pela carência e pela necessidade, seja pela prolixidade da natureza)

  • como certos objetos podem ser introduzidos no sistema das trocas,
  • como, pelo gesto primitivo da permuta, uma coisa pode ser dada como equivalente a outra,
  • como a estimação da primeira pode ser reportada à estimação da segunda conforme
    • uma relação de igualdade (A e B têm o mesmo valor)
    • ou de analogia (o valor de A. de posse do meu parceiro, está para minha necessidade como está para ele o valor de B que eu possuo).

O valor corresponde portanto à função atributiva que, para a gramática geral, está assegurada pelo verbo e que, fazendo aparecer a proposição, constitui o limiar primeiro a partir do qual há linguagem.

Quando, porém, o valor apreciativo se torna valor de estimação, isto é, quando se define e se limita no interior do sistema constituído por todas as trocas possíveis, então cada valor se acha estabelecido e demarcado por todos os outros: a partir desse momento, o valor assegura o papel articulatório que a gramática geral reconhecia em todos os elementos não-verbais da proposição (isto é, nos nomes e em cada uma das palavras que, visivelmente ou em segredo, detêm uma função nominal).

No sistema das trocas, no jogo que permite a cada parte de riqueza significar as outras ou ser por elas significada, o valor é ao mesmo tempo

  • verbo e nome,
  • poder de ligar e princípio de análise,
  • atribuição e determinação.

O valor, na análise das riquezas, ocupa, pois, exatamente a mesma posição que a estrutura na história natural; como esta, reúne numa única e mesma operação a função que permite

  • atribuir um signo a outro signo,
  • uma representação a outra representação
  • e a que permite articular os elementos que compõem o conjunto das representações ou os signos que as decompõem.

Por seu lado, a teoria da moeda e do comércio explica

  • como uma matéria qualquer pode assumir uma função significante reportando-se a um objeto e servindo-lhe de signo permanente;
  • explica também (pelo jogo do comércio, do aumento e da diminuição do numerário)
    • como essa relação de signo a significado pode se alterar sem jamais desaparecer,
    • como um mesmo elemento monetário pode significar mais ou menos riquezas,
    • como pode ele deslizar, estender-se, estreitar-se em relação aos valores que lhe compete representar.

A teoria do preço monetário corresponde, pois, ao que na gramática geral aparece sob a forma de uma análise das raízes e da linguagem de ação (função de designação) e ao que aparece sob a forma de tropos e de desvios de sentido (função de derivação). A moeda, como as palavras, tem por papel designar, mas não cessa de oscilar em torno desse eixo vertical:

  • as variações de preço estão para a instauração primeira da relação entre metal e riquezas
  • como os deslocamentos retóricos estão para o valor primitivo dos signos verbais.

Porém há mais:

  • assegurando a partir de suas próprias possibilidades a designação das riquezas,
  • o estabelecimento dos preços,
  • a modificação dos valores nominais,
  • o empobrecimento e o enriquecimento das nações,

a moeda funciona em relação às riquezas como o caráter em relação aos seres naturais: ela permite, ao mesmo tempo,

  • impor-lhes uma marca provisória
  • e indicar-Ihes um lugar, sem dúvida provisório, no espaço atualmente definido pelo conjunto das coisas e dos signos de que se dispõe.

A teoria da moeda e dos preços ocupa na análise das riquezas a mesma posição que a teoria do caráter na história natural.

Como esta última, reúne numa única e mesma função

  • a possibilidade de dar um signo às coisas,
  • de fazer representar uma coisa por outra
  • e a possibilidade de fazer desviar um signo em relação ao que ele designa.

As quatro funções que definem em suas propriedades singulares o signo verbal e o distinguem de todos os outros signos que a representação pode referir a si mesma encontram-se, pois, na sinalização teórica da história natural e na utilização prática dos signos monetários.

A ordem das riquezas e a ordem dos seres naturais se instauram e se descobrem na medida em que se estabelecem entre os objetos de necessidade, entre os indivíduos visíveis, sistemas de signos que permitem

  • a designação das representações umas pelas outras,
  • a derivação das representações significantes em relação aos significados,
  • a articulação do que é representado,
  • a atribuição de determinadas representações a determinadas outras.

Nesse sentido, pode-se dizer que, para o pensamento clássico,

  • os sistemas da história natural e as teorias da moeda ou do comércio
  • têm as mesmas condições de possibilidade que a própria linguagem.

O que quer dizer duas coisas:

  • primeiro, que a ordem na natureza e a ordem nas riquezas têm, para a experiência clássica, o mesmo modo de ser que a ordem das representações tal como é manifestada pelas palavras;
  • em seguida, que as palavras formam um sistema de signos suficientemente privilegiado, quando se trata de fazer aparecer a ordem das coisas,
    • para que a história natural, se bem-feita,
    • e para que a moeda, se bem regulada, funcionem à maneira da linguagem.

O que a álgebra é para a máthêsis, os signos, e em particular as palavras, o são para a taxinomia: constituição e manifestação evidente da ordem das coisas.

Existe, entretanto, uma diferença fundamental que impede que a classificação seja a linguagem espontânea da natureza, e os preços, o discurso natural das riquezas. Ou antes, existem duas diferenças,

  • uma que permite distinguir os domínios dos signos verbais daquele das riquezas ou dos seres naturais,
  • e outra que permite distinguir a teoria da história natural e a do valor ou dos preços.

Os quatro momentos que definem as funções essenciais da linguagem (atribuição, articulação, designação, derivação) estão solidamente ligados entre si, pois são requeridos uns pelos outros a partir do momento em que se transpôs, com o verbo, o limiar de existência da linguagem.

Mas, na gênese real das línguas, o percurso não se faz no mesmo sentido nem com o mesmo rigor: a partir de designações primitivas, a imaginação dos homens (segundo os climas em que vivem, as condições de sua existência, seus sentimentos e paixões, as experiências que fazem) suscita derivações que são diferentes conforme os povos e que explicam, sem dúvida, além da diversidade das línguas, a relativa instabilidade de cada uma.

Num dado momento dessa derivação e no interior de uma língua singular, os homens têm à sua disposição um conjunto de palavras, de nomes que se articulam uns com os outros e determinam suas representações; mas essa análise é tão imperfeita, deixa subsistir tantas imprecisões e tantas imbricações que, com as mesmas representações, os homens utilizam palavras diversas e formulam proposições diferentes: sua reflexão não está ao abrigo do erro.

Entre a designação e a derivação,

  • multiplicam-se os deslizes da imaginação;

entre a articulação e a atribuição,

  • prolifera o erro da reflexão.

É por isso que, no horizonte talvez indefinidamente recuado da linguagem, projeta-se a ideia de uma língua universal em que o valor representativo das palavras seria fixado com bastante nitidez, fundado bastante bem, reconhecido com suficiente evidência para que a reflexão pudesse decidir, com toda a clareza, sobre a verdade de qualquer proposição – língua por meio da qual “os camponeses poderiam julgar a verdade das coisas melhor do que o fazem agora os filósofos”(81); uma linguagem perfeitamente distinta permitiria um discurso inteiramente claro:

  • essa língua seria, em si mesma, uma Ars combinatoria.

É por isso também que o exercício de toda língua real deve ser duplicado por uma Enciclopédia que defina o percurso das palavras, prescreva as vias mais naturais, desenhe os deslizes legítimos do saber, codifique as relações de vizinhança e de semelhança.

O Dicionário é feito

  • para controlar o jogo das derivações
  • a partir da designação primeira das palavras,

assim como a Língua universal é feita

  • para controlar, a partir de uma articulação bem estabelecida,
  • os erros da reflexão quando ela formula um juízo.

A Ars combinatoria e a Enciclopédia se correspondem, de um lado e de outro, pela imperfeição das línguas reais. A história natural, uma vez que precisa realmente ser uma ciência, a circulação das riquezas, uma vez que é uma instituição criada pelos homens e por eles controlada, devem escapar a esses perigos inerentes às linguagens espontâneas.

Não há erro possível entre articulação e atribuição na ordem da história natural, pois que a estrutura se dá numa visibilidade imediata; também não há deslizes imaginários, falsas semelhanças, vizinhanças incongruentes que colocariam um ser natural corretamente designado num espaço que não fosse o seu, pois que o caráter é estabelecido quer pela coerência do sistema, quer pela exatidão do método.

A estrutura e o caráter asseguram, na história natural, o fechamento teórico do que fica em aberto na linguagem e faz nascer em suas fronteiras os projetos de artes essencialmente inacabados.

Do mesmo modo o valor que, de estimativo, torna-se automaticamente apreciativo, e a moeda que, por sua quantidade crescente ou decrescente provoca mas limita sempre a oscilação dos preços, garantem, na ordem das riquezas, o ajustamento entre a atribuição e a articulação, entre a designação e a derivação.

O valor e os preços asseguram o fechamento prático dos segmentos que permanecem em aberto na linguagem.

A estrutura permite à história natural achar-se de imediato no elemento de uma combinatória, e o caráter lhe permite estabelecer, a propósito dos seres e de suas semelhanças, uma poética exata e definitiva. O valor combina as riquezas umas com as outras, a moeda permite sua troca real.

Lá onde a ordem desordenada da linguagem implica a relação contínua com uma arte e com suas tarefas infinitas, a ordem da natureza e a das riquezas se manifestam na existência pura e simples

  • da estrutura e do caráter,
  • do valor e da moeda.

Entretanto, deve-se notar que a ordem natural se formula numa teoria que vale como a justa leitura de uma série ou de um quadro real:

  • a estrutura dos seres é, ao mesmo tempo, tanto a forma imediata do visível quanto sua articulação;
  • do mesmo modo, o caráter designa e localiza num único e mesmo movimento.

Em contrapartida,

  • o valor estimativo só se torna apreciativo mediante uma transformação;
  • e a relação inicial entre o metal e a mercadoria só pouco a pouco se torna um preço sujeito a variações.

No primeiro caso, trata-se de

  • uma superposição exata entre a atribuição e a articulação, entre a designação e a derivação;

no outro caso,

  • de uma passagem que está ligada à natureza das coisas e à atividade dos homens.

Com a linguagem, o sistema de signos é recebido passivamente em sua imperfeição e somente uma arte o pode retificar: a teoria da linguagem é imediatamente prescritiva.

A história natural instaura, de si mesma, para designar os seres, um sistema de signos e, por isso, é uma teoria.

As riquezas são signos que são produzidos, multiplicados, modificados pelos homens; a teoria das riquezas está ligada, de ponta a ponta, a uma política.

No entanto, os dois outros lados do quadrilátero fundamental permanecem abertos.

Como se explica que a designação (ato singular e pontual) permita uma articulação entre a natureza, as riquezas, as representações?

Como se explica, de um modo geral, que os dois segmentos opostos (do juízo e da significação para a linguagem, da estrutura e do caráter para a história natural, do valor e dos preços para a teoria das riquezas) se reportem um ao outro e autorizem assim uma linguagem, um sistema da natureza e o movimento ininterrupto das riquezas?

É aí que é realmente preciso supor que as representações se assemelham entre si e se evocam umas às outras na imaginação; que os seres naturais estão numa relação de vizinhança e de semelhança, que as necessidades dos homens se correspondem e encontram com que se satisfazer.

O encadeamento das representações, a superfície sem ruptura dos seres, a proliferação da natureza são sempre requeridos para que haja linguagem, para que haja uma história natural e para que possa haver riquezas e prática das riquezas.

O continuum da representação e do ser, uma ontologia definida negativamente como ausência do nada, uma representabilidade geral do ser e o ser manifestado pela presença da representação – tudo isso faz parte da configuração de conjunto da epistémê clássica.

Poder-se-á reconhecer, nesse princípio do contínuo, o momento metafisicamente forte do pensamento dos séculos XVII e XVIII (o que permite à forma da proposição ter um sentido efetivo, à estrutura ordenar-se em caráter, ao valor das coisas calcular-se em preço); já as relações entre articulação e atribuição, designação e derivação (o que funda o juízo de um lado e o sentido de outro, a estrutura e o caráter, o valor e os preços) definem, para esse pensamento, o momento cientificamente forte (o que torna possíveis a gramática, a história natural, a ciência das riquezas).

A ordenação da empiricidade se acha assim ligada à ontologia que caracteriza o pensamento clássico; este, com efeito, se acha desde logo no interior de uma ontologia, tornada transparente pelo fato de que o ser é dado sem ruptura à representação; e no interior de uma representação iluminada pelo fato de que ela libera o contínuo do ser.

Quanto à mutação que, por volta do final do século XVIII, se produziu em toda a epistémê ocidental, é possível caracterizá-Ia de longe, desde agora, dizendo

  • que um momento cientificamente forte se constituiu lá onde a epistémê clássica conhecia um tempo metafisicamente forte;
  • e que, em contrapartida, se apurou um espaço filosófico lá onde o classicismo havia estabelecido suas mais sólidas travas epistemológicas.

Com efeito,

  • a análise da produção, como projeto novo da nova “economia política”, tem essencialmente por papel analisar a relação entre o valor e os preços;
  • os conceitos de organismos e organização, os métodos da anatomia comparada, em suma, todos os temas da “biologia” nascente explicam de que modo estruturas observáveis em indivíduos podem valer, a título de caracteres gerais, para gêneros, famílias, ramificações;
  • enfim, para unificar as disposições formais de uma linguagem (sua capacidade para constituir proposições) e o sentido que pertence a suas palavras, a ‘filologia” estudará não mais as funções representativas do discurso, mas um conjunto de constantes morfológicas submetidas a uma história.

Filologia, biologia e economia política se constituem não no lugar da Gramática geral, da História natural e da Análise das riquezas, mas lá onde esses saberes não existiam, no espaço que deixavam em branco, na profundidade do sulco que separava seus grandes segmentos teóricos e que o rumor do contínuo ontológico preenchia.

O objeto do saber, no século XIX, se forma lá mesmo onde acaba de se calar a plenitude clássica do ser.

Inversamente, um espaço filosófico novo vai libertar-se lá onde se desfazem os objetos do saber clássico.

  • O momento da atribuição (como forma do juízo) e o da articulação (como recorte geral dos seres)
    • se separam, fazendo nascer o problema das relações entre
      • uma apofântica e
      • uma ontologia formais;
  • o momento da designação primitiva e o da derivação através do tempo se separam,
    • abrindo um espaço onde se coloca a questão das relações entre
      • o sentido originário
      • e a história.

Assim se acham posicionadas as duas grandes formas da reflexão filosófica moderna.

Uma interroga as relações entre a lógica e a ontologia; procede pelos caminhos da formalização e encontra sob um novo aspecto o problema da máthêsis.

A outra interroga as relações entre a significação e o tempo; empreende um desvelamento que não é e, sem dúvida, jamais será acabado, e traz de novo à luz os temas e os métodos da interpretação.

Sem dúvida, a questão mais fundamental que então se pode colocar para a filosofia concerne à relação entre essas duas formas de reflexão.

Por certo não compete à arqueologia dizer se essa relação é possível nem como pode fundar-se;

  • mas ela pode designar a região onde essa relação busca estabelecer-se, qual o lugar da epistémê em que a filosofia moderna tenta encontrar sua unidade, em que ponto do saber descobre seu mais amplo domínio: esse lugar é aquele onde
    • o formal (do apofântico e da ontologia)
    • se reuniria ao significativo tal como ele se aclara na interpretação.

O problema essencial do pensamento clássico se alojava nas relações entre o nome e a ordem:

  • descobrir uma nomenclatura que fosse uma taxinomia, ou, ainda,
  • instaurar um sistema de signos que fosse transparente à continuidade do ser.

O que o pensamento moderno vai colocar fundamentalmente em questão é a relação do sentido com a forma da verdade e a forma do ser:

  • no céu de nossa reflexão, reina um discurso – um discurso talvez inacessível – que seria a um tempo uma ontologia e uma semântica.

O estruturalismo não é um método novo; é a consciência desperta e inquieta do saber moderno.

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